Padre Victor: gravidez 'milagrosa' beatificará ex-escravo no Sul de Minas

Mulher tinha única trompa obstruída e engravidou após novena a religioso.
Jovem negro que se tornou padre em 1851 será beatificado em Três Pontas.

Quando Maria Isabel de Figueiredo se casou com José Maurício Silvério, eles dividiam o sonho de ter um filho. Por isso foi difícil, após anos de tentativas, aceitar as palavras da médica de que Isabel não poderia engravidar. Para o casal só restou acreditar que um milagre pudesse mudar os fatos, e após um pedido a Padre Victor, ele aconteceu. Isabel engravidou. E no dia 14 de novembro deste ano, este milagre beatificará Padre Victor em Três Pontas (MG).

Imagem Padre Victor (Foto: Reprodução EPTV)
A beatificação é uma permissão de culto da Igreja Católica a uma pessoa que teve uma vida ‘santa’ e passa a interceder por outras. Ter tido uma vida de virtudes torna o candidato apto ao processo de beatificação, mas são os milagres que fazem um santo, para o povo e principalmente para a Igreja. Uma vez provada uma cura que não tenha explicação científica, o candidato é elevado ao altar da Igreja como beato. Um segundo milagre o torna santo.
Rastros de vida
Bem ao lado da Igreja Matriz Nossa Senhora D’Ajuda, em Três Pontas, está o Memorial Padre Victor. A professora Denise Reis de Abreu, 71 anos, e a secretária Adriana Maria de Mesquita, 53 anos, fazem parte da associação fundada para colher os dados do religioso e preservar sua história. As duas acompanharam de perto todas as etapas para beatificação do religioso, processo que teve início em 1993 e foi complementado em 1998.
Na sala dentro do casarão que abriga o memorial, as duas espalham documentos, fotografias, transcrições de relatos. Tudo faz parte da primeira etapa do processo, que pesquisa historicamente toda a vida do candidato.
Adriana e Denise seguram o Positio, que contém toda a pesquisa histórica de Padre Victor (Foto: Samantha Silva / G1)Adriana e Denise seguram o Positio com a pesquisa histórica de Padre Victor (Foto: Samantha Silva / G1)
“Primeiro você tem que provar que a pessoa existiu. Se não tiver isso, não começa o processo de beatificação”, explica Denise. “Não é rápido, é um processo longo e muito minucioso, tem que comprovar tudo e o início é sempre mais difícil, porque a gente tem que pegar toda a história da vida da pessoa, documentos.”
Uma vez aberto o processo, o candidato ganha o título pela Igreja de “Servo de Deus”. Para iniciar os trabalhos, é formada uma comissão com um bispo postulador do Vaticano, que trabalha como uma espécie de advogado no processo, e voluntários que vão ajudar na pesquisa e reunir todo o material.
Documentos e objetos que provam existência da pessoa são reunidos, Padre Victor (Foto: Samantha Silva / G1)Documentos e objetos que provam existência da
pessoa são reunidos (Foto: Samantha Silva / G1)
O primeiro passo é encontrar os documentos que comprovem que a pessoa existiu. No caso de Padre Victor, que viveu no século XIX, o primeiro documento foi a certidão de batismo (que também registrava quando a pessoa tinha nascido) e em seguida, a certidão de óbito. Como ele foi um religioso, outros documentos importantes foram preservados pela Igreja, como a matrícula no Seminário de Mariana (MG), a ordenação, transferências de paróquia, registros de batismos que ele fez como padre.
Depois a comissão começa a reunir os relatos de todas as histórias do candidato. Denise explica que, como Padre Victor morreu em 1905, as testemunhas foram auriculares, ou seja, que não conheceram o padre, mas ouviram suas histórias de pais, avós e conhecidos. “Só teve uma pessoa que conseguimos entrevistar que realmente conheceu ele, a dona ‘Francisquinha’, já falecida. Ela foi batizada por ele. Quando Padre Victor morreu, ela tinha 7 anos”, conta Denise.
1 - Servo de Deus: título que a pessoa recebe ao ser iniciado o processo de beatificação.
Em sua maioria, os relatos foram encontrados em Campanha (MG), onde ele nasceu, no seminário de Mariana, onde estudou, e em Três Pontas, onde foi padre por 53 anos.
Provando uma existência
Outra etapa importante do processo é fazer a exumação do corpo do candidato, para comprovar que a pessoa enterrada como ele era de fato Padre Victor e “não ter perigo de cultuar alguém que não existiu”. Uma equipe de Belo Horizonte (MG) realizou o exame em junho de 1998. “Nós assistimos a exumação”, conta Denise. “É tão interessante: eles vão colocando os ossos e formando o corpo, e aí vai dando os detalhes de como ele era.”
Assim que o exame começou, já foi possível identificar que ele era negro, corroborando todas as histórias. “O médico já disse: negro ele é, pelo formato do crânio. Nós também ficamos sabendo que ele tinha 1,72 metros de altura. Achávamos que ele era mais alto”, conta.
Dom Diamantino (à esq.) durante exumação do corpo de Padre Victor, em 1998 (Foto: Arquivo Secretaria de Cultura de Três Pontas)Dom Diamantino (à esq.) durante exumação do corpo de Padre Victor, em 1998 (Foto: Arquivo Secretaria de Cultura de Três Pontas)
Após o procedimento, os relatos e documentos são traduzidos para o italiano e reunidos em um livro chamado de “Positio - Vida, Virtudes e Fama de Santidade”. Adriana mostra a publicação de capa vermelha e letras douradas, que é mantida “a sete chaves” na associação. Todos que tiveram acesso ao documento fazem um juramento de mantê-lo em sigilo. Há três cópias da Positio: uma com a associação, outra com a Diocese de Campanha (MG) e uma terceira que é enviada ao Vaticano.
“A associação foi criada para colher esses dados, mas também custear tudo isso, porque gera custos”, explica Denise. “Você tem que fazer uma tradução [para o italiano], tem que pagar os médicos [para os exames], inclusive os lá na Itália para fazer uma nova comprovação, enviar pelo Correio, então é um processo que gera despesas também. [Nesse período] a gente pouco dorme, é muito trabalho, mas é muito gratificante.”
2 - Venerável: título decretado quando comprova-se que a pessoa viveu as virtudes cristãs de forma heroica ou que sofreu martírio.
Uma vez em Roma, a Positio é analisada por uma comissão de cardeais e bispos, e ainda pelos historiadores e teólogos da Congregação para a Causa dos Santos do Vaticano, que é o “ministério” responsável por acompanhar todos os processos de beatificação e canonização da Igreja Católica.
Se a congregação aprovar as virtudes heroicas do candidato, ou seja, que ele teve uma vida que se aproxima da santidade, ele é declarado “Venerável” e pode seguir para a próxima etapa do processo. Padre Victor recebeu o título pelo Papa Bento XVI em maio de 2012.
A partir daí, a comissão sai em busca de um milagre por intercessão do candidato.
Isabel segura a filha Alice de apenas um mês (Foto: Samantha Silva / G1)Isabel segura a filha Alice de apenas um mês
(Foto: Samantha Silva / G1)
Uma nova vida
“Desde quando me casei, eu já sabia que teria alguns problemas para engravidar”, conta a professora Maria Isabel na sala da casa onde vive em Três Pontas. Ela e o marido tentavam todos os métodos possíveis para tentar realizar o sonho de ter um filho.
“Até que no último [tratamento] eu descobri que tinha uma trompa obstruída e uma que funcionava normal. Então eu fiz uma indução de ovulação, que evoluiu para uma gravidez tubária, nas trompas, na qual eu perdi a trompa boa e fiquei só com a que é obstruída”, lembra.
Isabel então teve que ouvir de sua médica de confiança que não poderia engravidar. “Daí a doutora comunicou a mim e meu marido que eu só poderia engravidar por uma fertilização in vitro ‘ou então por um milagre’.”
O marido de Isabel também se lembra das palavras da médica que lhe deu a notícia. “Na saída, a doutora apertou a minha mão e falou comigo: Maurício, você tem que dar um apoio para a Isabel, porque agora, infelizmente, pela medicina não tem mais recurso, só in vitro. Só que aí, no mesmo momento, e foi até uma coisa interessante, ela falou: mas pra Deus nada é impossível”, conta.
Milagre: cura extraordinária, instantânea, perfeita e permanente  de forma que a medicina não possa explicar.
Sem condições de recorrer a outro meio, Isabel se apoiou somente na fé que tinha. Ela se lembra como se fosse hoje da missa de novena de Padre Victor. Era 2009, e a cerimônia naquele ano foi campal por causa da gripe H1N1.
“Depois da missa, eu escrevi o pedido pra ser queimado no último dia da novena e com toda a confiança eu acreditei. Como o padre disse: ‘que a fumaça daquele pedido seria levada ao céu’, eu acreditei que Padre Victor intercederia por mim, que eu iria ser mãe. Se não fosse um filho da minha barriga, que fosse uma criança ‘do coração’”, conta.
O casal chegou a se cadastrar e entrar na fila para adoção de uma criança. Mas em 2010, o impossível aconteceu. “Eu comecei a ter os sintomas da gravidez. Minha mãe ainda falou: ‘acho que você está grávida’. Fiz um teste de farmácia, um exame de sangue com a minha médica de confiança. No início ela até duvidou: ‘diante dos problemas que você teve, você não pode engravidar, pode ser uma alteração hormonal’”, lembra.
Maurício segura relíquia antiga de Padre Victor passada a ele pela mãe, também devota (Foto: Samantha Silva / G1)Maurício segura relíquia antiga de Padre Victor
passada a ele pela mãe, também devota
(Foto: Samantha Silva / G1)
A médica solicitou então um ultrassom, único exame que confirmaria sem sombra de dúvidas a gravidez.  “No primeiro que eu fiz, eu já ouvi o coraçãozinho do bebê batendo. Eu fui até a igreja e agradeci o Padre Victor. Eu tinha certeza que tinha recebido uma graça muito grande e que foi pela intercessão dele”, conta.
A caminho da beatificação
Assim que percebeu o “impossível” que acontecia, Silvério procurou o padre de Três Pontas para contar da gravidez e ouviu do pároco: “esse vai ser o milagre do Padre Victor”. Enquanto Isabel repousava, o padre e o marido juntavam toda a documentação necessária. Para dar entrada na próxima fase do processo era preciso esperar a criança nascer.
Dom Diamantino Prata de Carvalho, bispo da Diocese de Campanha (MG) responsável por Três Pontas, explica que milagre não é graça, ou seja, uma experiência espiritual de melhora ou ajuda, mas uma cura física extraordinária comprovada pela medicina. “O Vaticano não deixa passar nada. É investigado o antes e o depois, se não houve sequelas, se foi uma cura completa e permanente.”
Após vir ao mundo por milagre de Padre Victor, Sofia hoje está com 4 anos  (Foto: Samantha Silva / G1)Após vir ao mundo por milagre de Padre Victor, Sofia hoje está com 4 anos (Foto: Samantha Silva / G1)
Sofia nasceu no dia 16 de março de 2011 com perfeita saúde. Em seguida, montou-se uma espécie de tribunal para investigar o caso. “Veio o postulador do Vaticano até aqui em Três Pontas e foram chamadas várias pessoas para testemunhar, pessoas que sabiam da minha devoção, médicos envolvidos no caso, enfermeiros do hospital. Toda a investigação acontecia sob sigilo para que não houvesse nenhuma interferência”, conta Isabel.
Ela teve que refazer todos os exames para comprovar que não havia possibilidade de engravidar. Em um deles, uma câmera é colocada no útero e é injetado o contraste para ver se algo passaria pela trompa. Isabel passou pelo procedimento duas vezes até que se comprovou que era impossível algo passar até o útero. Também foi feito um exame de DNA, para descartar qualquer irregularidade na história.
Parede do memorial com inúmeros milagres atribuídos a Padre Victor, Três Pontas (Foto: Samantha Silva / G1)Parede do memorial com inúmeros milagres
atribuídos a Padre Victor (Foto: Samantha Silva / G1)
“O médico da clínica [que eu fiz o exame] tem 40 anos de profissão e nunca tinha visto uma mulher engravidar com a trompa assim. Ele não acreditava que eu tinha uma filha. Depois ele até me pediu uma relíquia do Padre Victor, e eu dei, já que sempre carrego comigo”, lembra Isabel.
Todo o material foi enviado mais uma vez para o Vaticano, onde passou por uma junta médica, que deu o parecer de que não era possível uma mulher engravidar naturalmente nessa situação, e uma comissão de teólogos, que analisa a intenção de cura através de uma intercessão.
No dia 2 de junho de 2015, a Congregação para a Causa de Todos os Santos aprovou o milagre de Isabel em Três Pontas, abrindo o caminho para a beatificação de Padre Victor. “Eu sempre acreditei na santidade dele, no poder de intercessão dele. Mas ali, saber que foi um milagre, uma coisa que a medicina não explica, é muita felicidade”, finaliza Isabel.
A beatitude na Igreja Católica
O Papa Francisco assinou o decreto de beatificação de Padre Victor no dia 5 de junho de 2015. A cerimônia foi marcada para o dia 14 de novembro, cerca de uma semana antes do Dia da Consciência Negra – já que o religioso foi exemplo de quem venceu as barreiras do preconceito.
Conheça a nova imagem de Padre Victor que será divulgada na beatificação (Foto: Reprodução EPTV)Imagem oficial de Padre Victor, que será divulgada na beatificação (Foto: Reprodução EPTV)
Ao receber o título de beato, o candidato passa a poder ser cultuado em sua região de origem, ou seja, capelas e igrejas podem receber o nome dele. Na cerimônia, também é apresentada a imagem oficial do beato. Segundo explica Dom Diamantino, a imagem carrega os símbolos da origem do beato e suas feições adquirem uma certa jovialidade (que simboliza a leveza da santidade). Com a beatificação, a imagem também pode ter um lugar no altar da igreja.
A etapa seguinte do processo da Igreja Católica é a canonização, quando é preciso provar cientificamente mais um milagre após a beatificação do candidato. Ao ser intitulado santo, a pessoa pode ser cultuada em todo o mundo.
3 - Beato: título decretado quando se comprova um milagre por intercessão da pessoa. O beato pode ser venerado dentro da Igreja Católica na sua região.

4 - Santo: título decretado quando se comprova um segundo milagre por intercessão da pessoa após a beatificação. O santo pode ser venerado na Igreja Católica em todo o mundo.
“Pra nós trespontanos tem grande valor [a beatificação], porque a gente conhece [a história dele] de pais, de avôs. Pra nós até já consideramos [ele] bem como santo”, comenta Denise. “É um meio de propagar essa santidade, essa vida de exemplo. Um negro que não tinha possibilidade nenhuma, mas lutou pelos ideais dele. É importante que a gente espalhe isso: que a pessoa lute pelo seu ideal, que lute pela sua causa.”
Dom Diamantino chegou em Campanha no dia 6 de fevereiro de 1992 e pôde acompanhar todo o processo de Padre Victor, “todas as 'dores do parto'". Para ele, a alegria é imensa na beatificação. "Estamos todos em festa, estamos agradecidos a Deus por essa dádiva, esse dom que Ele nos concede, só temos a agradecer."
A vida após um milagre
Se não bastasse ter a vida transformada por um milagre, pouco mais de três anos após ter dado à luz Sofia, Isabel engravidou novamente. Alice veio ao mundo no dia 1º de outubro deste ano, e enquanto a mãe descrevia os últimos anos de sua vida ao G1, a menina descansava em seus braços. Em seu interior, Isabel carrega a certeza de que foi curada, mas não refez os exames após a segunda gravidez.
Isabel com as filhas e o marido: uma família completa por milagre de Padre Victor (Foto: Samantha Silva / G1)Isabel com as filhas e o marido: uma família completa por milagre de Padre Victor (Foto: Samantha Silva / G1)
Ela é questionada sobre o que sente ao saber que o seu milagre beatificará Padre Victor. “Pra mim foi uma felicidade muito grande”, afirma. “O sonho de todos os devotos de Padre Victor é que acontecesse esse reconhecimento pela Igreja Católica. Pra mim foi melhor ainda porque além da fé que eu tinha nele desde criança, minha mãe sempre falou que ela não queria morrer sem ver o Padre Victor beatificado. Pra mim, proporcionar a ela esse momento... É até difícil descrever o que a gente sente, o que senti quando soube que o milagre aprovado era o meu.”
À parte todas as certezas canônicas, o que Isabel pôde compreender após todos esses anos é a profundidade de ver o impossível acontecendo simplesmente por ter acreditado nele.
“Se eu já achava importante educar as minhas filhas na fé, hoje eu penso que sem fé a gente não chega a lugar nenhum. A gente tem que confiar em Deus, no poder de intercessão dos santos de confiança da gente, e nunca desanimar diante das dificuldades da vida.”

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