O Supremo Tribunal Federal (STF) abriu nesta quarta-feira as discussões sobre o trâmite do processo de impeachment com um voto desfavorável à presidente Dilma Rousseff.
Primeiro a se manifestar, o ministro Edson Fachin rejeitou a maioria dos pedidos feitos pelo PCdoB, partido da base governista.
Após seu voto, a sessão foi suspensa para ser retomada na quinta-feira. Ministros indicaram que farão todo o esforço para concluir votação até sexta, antes do recesso do Judiciário.
As decisões de Fachin foram ruins para a presidente em três pontos importantes. O ministro rejeitou a tese do PCdoB de que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, teria que ter ouvido a defesa de Dilma antes de decidir por dar início ao trâmite do processo de impeachment. Para Fachin, a presidente terá direito a se defender das acusações ao longo do trâmite de processo.
Ele também considerou válida a sessão que elegeu na semana passada, com voto secreto, a chapa da oposição para ocupar a maioria das vagas da Comissão Especial da Câmara que vai emitir parecer a favor ou contra abertura de processo contra Dilma. No entanto, a suspensão dessa votação segue valendo até que os demais dez ministros se manifestem por sua manutenção ou anulação.
Por fim, Fachin também votou que, caso a Câmara decida pela abertura do processo, Dilma é automaticamente afastada de seu cargo por até 180 dias para ser julgada pelo Senado.
O PCdoB – com apoio do presidente do Senado, Renan Calheiros, e do procurador-geral da República, Rodrigo Janot – argumentou que antes da abertura do processo e do afastamento de Dilma, a decisão da Câmara teria que passar pelo crivo dos senadores. Isso seria positivo para a presidente porque sua base é mais sólida no Senado.
De certa forma, o voto de Fachin foi surpreendente. Na semana passada, quando ele decidiu suspender o rito de impeachment para que o STF pudesse analisar diversos questionamentos sobre a questão, houve uma percepção de que o ministro entendia que a votação da eleição da Comissão Especial deveria ser aberta, por exemplo.
Há exatas duas semanas, Cunha tomou a polêmica decisão de dar início ao trâmite que decidirá sobre a um possível julgamento que pode cassar Dilma.
Já a primeira etapa do procedimento – a eleição dos 65 deputados que formarão uma Comissão Especial – foi alvo de intensa disputa política entre governo e oposição, culminando em uma tensa votação no plenário da Câmara na terça-feira da semana passada, com direito a urnas quebradas e agressões de ambos os lados.
O principal ponto da polêmica foi a decisão de Cunha de realizar uma votação secreta para definir qual chapa de deputados levaria a maioria das vagas na comissão, se a governista ou a oposicionista. A percepção era que o voto fechado permitiria a parlamentares da base governista trair o governo sem risco de retaliação. O resultado foi que a chapa oposicionista levou a disputa com 272 votos contra 199 em apoio à governista.
Imediatamente após a votação, parlamentares da base do governo acionaram o STF.

Mas por que é o STF que decide isso?

Em resumo, é o Supremo que tem a função de garantir o respeito à Constituição Federal, a principal lei do país. A Carta prevê, entre várias outras coisas, quais são os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, como os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário devem funcionar e, de modo geral, como funciona um processo de impeachment.
Tudo que é decidido no Congresso e todas as demais leis aprovadas por ele devem respeitar normas e princípios previstos na Constituição. Cabe ao Supremo avaliar se isso está de fato ocorrendo e intervir em caso contrário, por exemplo anulando eventuais decisões dos parlamentares que julgue inconstitucional.
A análise do Supremo inclusive se estende sobre leis anteriores a 1988. Cabe a ele analisar que trechos das leis antigas que seguem em vigor estão de acordo com a Constituição de 1988 e quais perderam validade.
A lei que detalha o procedimento de impeachment é de 1950 – a análise central que o Supremo fará hoje é justamente sobre o conteúdo dessa lei.
"O processo de impeachment é uma função atípica do Congresso, pois nesse caso está julgando um suposto crime de responsabilidade e não exercendo sua função principal de legislar", observa Pedro Abramovay, ex-secretário Nacional de Justiça no governo Lula.
Por isso, é natural que o Supremo interfira, ressalta: "O impeachment não é uma decisão apenas política, é também jurídica, feita por um órgão que não está aparelhado para isso. Então, a forma como será tomada essa decisão, como será o processo, tem que ser estabelecida pelo Supremo".
O presidente da Associação Juízes para a Democracia, André Augusto Bezerra, considera a ruim a "judicialização da política". No caso do impeachment, porém, diz que é muito importante que o Supremo assuma o papel de "guardião da legalidade".
"Veja bem, os direitos que estão em jogo são de suma importância. O impeachment está previsto na Constituição, mas é uma medida excepcional. Tem que tomar cuidado. Ele pode levar à Presidência da República alguém que não foi eleito para isso", ressalta.

Impeachment de Collor como referência?

Mas se o impeachment do Collor ocorreu em 1992, portanto regido já pela Constituição de 1988, por que tantas dúvidas e questionamentos sobre o trâmite a ser adotado? Não bastaria replicar o procedimento realizado em 92?
Naquela ocasião, o Supremo também foi acionado a se posicionar em várias questões. Ele, por exemplo, garantiu um tempo mais amplo de defesa para Collor do que estava sendo dado pela Câmara.
Para especialistas, não é possível aaplicar hoje a decisão de um Supremo no caso do impeachment de Collor© Copyright British Broadcasting Corporation 2015 Para especialistas, não é possível aaplicar hoje a decisão de um Supremo no caso do impeachment de Collor
No entanto, os juristas consideram natural que haja de novo intensa disputa em torno do procedimento, dada a sua gravidade. E quando houve o impeachment do Collor, ressaltam, a Constituição era muito recente. Agora, após quase três décadas de sua promulgação, a interpretação em torno dela pode evoluir, o que abre espaço para novas consultas ao Supremo.
"A visão sobre a Constituição mudou, hoje ela é levada mais a sério do que em 92, quando era um texto muito novo. Isso tem que ser ponderado nesse processo", diz Abramovay.

Dos militares ao Supremo

O processo de redemocratização após o fim da Ditadura Militar (que governou o país entre 1964 e 1985) e a promulgação de uma nova Constituição Federal bastante ampla em 1988 estão por trás do processo de fortalecimento do papel do STF, afirmam juristas.
O Supremo Tribunal Federal foi criado com esse nome logo após a proclamação da República em 1889, em substituição ao Supremo Tribunal de Justiça que funcionava durante o Império. Desde então, sofreu modificações na sua operação e também intervenção de governos autoritários, como o Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas e a ditadura militar, que aposentaram alguns ministros.
"O processo de impeachment é uma função atípica do Congresso", afirma Pedro Abramovay, ex-secretário Nacional de Justiça no governo Lula© Copyright British Broadcasting Corporation 2015 "O processo de impeachment é uma função atípica do Congresso", afirma Pedro Abramovay, ex-secretário Nacional de Justiça no governo Lula
O professor de direito constitucional da FGV-SP Oscar Vilhena Vieira observa que, desde a Proclamação da República, os militares exerceram "o poder moderador" durante os momentos de polarização e crise política, apeando e nomeando presidentes, até que em 1964 tomaram de fato o poder para si.
"Passaram de moderadores para usurpadores do poder", resume.
Com a redemocratização a partir de 1985 e promulgação da Constituição de 1988, o "poder moderador" passou então para o Supremo Tribunal Federal. Ele nota que hoje os apelos por um golpe militar se restringem a um grupo muito pequeno da população, o que é reflexo do amadurecimento da nossa democracia.
"Há uma mútua maturidade. Os civis estão mais maduros de não ir buscar uma aliança com os militares e os militares também deixaram de se seduzir pelo canto da sereia dos civis golpistas", observa.
Mas um ponto que gera controvérsia entre juristas é se o STF poderia ir além das decisões formais sobre como deve tramitar o impeachment e tomar uma decisão de mérito sobre se as irregularidades fiscais cometidas no governo Dilma seriam suficientes para justificar um impeachment.
Essa questão é mais delicada pois poderia significar uma interferência do Judiciário na função do Congresso de julgar o processo de impeachment. Esse ponto, no entanto, não está previsto para ser analisado hoje – deve ficar para um próximo capítulo da disputa, caso tal questionamento seja levado ao Supremo.